segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Sobre cães e cavalos


Foto by B.

Suja odeia cavalos e os domingos são dias certos para dar de cara com muitos deles. Se ela pudesse, cravava-lhe os dentes na coxa, ou puxava o rabo numa bocanhada de força movida pela raiva. Suja, no entanto, nunca teve a chance de se apossar de um; entre um cavalo e ela sempre existiu um espaço transparente que a corrente não lhe permite perpassar. Basta, porém, o vislumbrar ao longe para que ela perca completamente a razão e emita um ladrido de desespero. Os cavalos são pragas que ela adoraria eliminar do mundo, eu sei; nós sabemos. Quarteirões inteiros sabem da presença de um cavalo quando a rua não está ausente da presença de Suja.

Tonho, Suja e Ralf fazem parelha todo domingo. Domingo é dia de passeio e banho pra Suja e pra Ralf, e de trabalho, muito trabalho, para Tonho. O calvário é mesmo na hora da missa, dez da manhã. A hora pra terminar depende dos ânimos, mais do de Suja que do de qualquer um. Outro dia mesmo, terminou bem tarde...

Suja, ao ver um cavalo, chacoalha-se no ar, enche o som do mundo de um grito absurdo, morde o vento e eriça o pêlo, deixando-o inexplicavelmente longo. Outro dia de domingo, o transtorno de Suja ultrapassou o esperado. Ao ver o cavalo, teve início o descontrole. Só que, ao invés do vento, o alvo da bocanhada foi a orelha de Ralf, que abandonou de vez a antiga forma triangular: agora, uma fenda a separa em dois hemisférios. Tonho, em vão, durante algumas horas, tentou conter o sangue da orelha de Ralf, que deixava um rastro vivo, gotejante e uniforme anunciando a sua passagem por onde quer que ele fosse.

Não sei por que essa relação de repulsa que exercem alguns cachorros sobre os cavalos; inveja, talvez, afinal, um cão é um cavalo bem menor e menos ágil. Sempre quis ter um cavalo, mas, como não são seres muito portáteis, o espaço de que dispunha até agora só me permitiu criar os cães. E enquanto Suja viver, pelo jeito, só os cães, fosse lá qual fosse o espaço. A tirar pela orelha de Ralf, me pego imaginando mil formas para o rabo do cavalo... não, melhor não.

11 comentários:

Anônimo disse...

A pequena Suja pode até ter inveja dos cavalos, mas não sabe que na sua loucura está a maior liberdade que existe. Quando eu for livre e louca como ela também vou morder o que me desagrada. Suja quero conhecer sua falta de bom senso.Quero um pouco da sua loucura.

Anônimo disse...

Como é bom te ler... ainda mais sobre Suja e o nego Ralf. Viajo no tempo, de volta há alguns anos, e vejo que a Pequena não muda. E não pode mudar. Ela é assim e é única. Um ser iluminado...

Me disse...

Como é bom te ver, Kiu!
Pois é, o tempo passa, mas o essencial permanece. Ainda bem, né não?
Beijo grande pra tu!

Me disse...

Pois é, espontaneidade ela tem de sobra. Mas desta vez acabou sobrando pra quem não tinha nada a ver com a história, o pobre do Ralf. Isso só faz confirmar a minha tese: cachorro é igual a cavalo, só que menor e menos ágil. :)

Anônimo disse...

Seus melhores textos são aqueles que trazem nas imagens uma concretude quase palpável, plástica; aqueles que mostram simplesmente e ao mostrar signficam além da simplicidade.

O contrário também é verdadeiro: seus textos perdem força quando as imagens se aproximam dos meros jogos de palavras, dos raciocínios abstratos carentes da firmeza de um ponto de apoio mais concreto.

Neste texto não há nada disso. Neste texto, as imagens falam por si e de si para o leitor (nunca - e isto é importante - apenas *além* de si): o espaço transparente que separa a mordida de Suja do cavalo imaginariamente mordido; a ausência de Suja como presença (haverá exemplo mais claro de concretude, de tangibilidade?); o mundo preenchido por um grito absurdo, dando corpo ao vazio que é tanto o grito quanto o absurdo nele materializado...

E, é claro, também o senso de humor, o cômico, aqui surge marcado por essa materialidade, e ganha através dela um ar de ternura, uma inocência que somente a imagem concreta, liberta dos artifícios retóricos e portanto mais imediata, consegue nos transmitir : os cães, cavalos bem menores e menos ágeis.

Lindo. ;*

Me disse...

Inocência que a imagem concreta da foto também ajuda a transmitir. E esse momento lindo, nunca é muito lembrar, foi teu.
=**
=D

Anônimo disse...

Comala continua por aqui(Não confunda-me com o primeiro que aqui comentou)

"Não tive cães não transmiti a eles o legado da minha miséria". Pelas ruas de Comala os olhos do "Cão Andaluz" vêem sombras que caem lentamente e se arrastam lentamente Não há Suja(nem mesmo o Poema Sujo do maranhense. Ralf seria apenas um estafeta da Legião Condor é que levou Franco ao poder? Mas qual franco poder persiste aos uivos de antigos lobos de estepes urbanas? Incitatus seria um cavalo que se assustaria? Quem tem medo de Vírginia Woolf? Comala venta. Comala sibila. Comala espera que alguém cruze o Rubicão.

Anônimo disse...

manda essa cachorra psicopata pra o Bom Pastor canino!eheheheheh
ela é uma psicopata, elemento de alta periculosidade aos pobres eqüinos!

Me disse...

ô, a bichinha... um amor de cachorra.
:)

Me disse...

Suja não nega um woof ao ver um cavalo. Incitatus ficaria coxo. Suja seria levada a julgamento? Enquanto ao cavalo de Miguel Páramo, acho que esse escaparia das mandíbulas caninas. Talvez a única possibilidade de Suja trocar o woof-woof por um ganido desesperado. Em Comala, tudo se transforma, os instintos se traem; nada é tão previsível assim.

Anônimo disse...

Em Comala não há espaço para Banzé? Pluto?Bidu?Floquinho?Snoppy? A carrocinha passou e levou três cachorros de uma vez? Ulalá!