quarta-feira, 26 de julho de 2006

Bem-vindo, apêndice extra-cotidiano...

Acho depender dos verbos mais perigosos e dependência uma palavra feinha que só. Desde que me lembro de me lembrar de mim, dependo de um monte de coisa: comer, dormir, de gente. Tem coisas que são inerentes; coisas de que a gente depende e pronto. E às vezes a dependência é tão automática que nem nos damos conta de que dependemos da coisa, só quando nos falta. Detesto depender de um monte de coisa; de coisas extra-cotidianas, então, nem te falo.

Alguns sentidos já me faltaram algumas vezes (tomo sentido, aqui, em sentido lato, lato!), ainda que de maneira temporária: as pernas (fraturas), a audição (queda), o equilíbrio (labirintite) e até a consciência (desmaio). Já fiquei sem andar por semanas, mas, como sentia as pernas, sabia que aquilo era algo com data certa pra acabar. Algumas faltas de sentido se me assemelham a uma dormência. Sabemos que o sentido permanece e que o nosso não-sentir é temporário. Mas existem deficiências que não têm fim marcado, que nos tornam dependentes de objetos que serão apêndices de nós mesmos: cadeiras de roda, aparelhos de surdez, remédio pra isso e aquilo etc.

Passei bons anos dependendo pouco de comida e de sono. Não sentia fome e, por mim, tomava qualquer coisa só pra me nutrir e pronto. Cheguei a dormir dia sim, dia não, na época do pensionato e nos primeiros tempos em que me mudei pra esta casa. Hoje, ainda que me fosse legado o direito de viver sem comer e dormir, não sei se o faria. Às vezes o dia vale pelo sonho daquela noite... e comer, ah! O meu paladar me fez refém de alguns sabores: o crepe 25 do Montmartre, alguns cafés, morangos com chocolate, morango com chantilly, morango sem nada... e, nas veredas mexicanas, além de paladar, o entorno: duas horas de almoço (sem acréscimo ou diminuição temporal) ao redor da mesa redonda rodeada de gente que ria, falava e comia, como eu. Passei a me entregar àquela dependência e a achar comida uma coisa boa quando ela passou a nutrir outras esferas de mim...

E de gente, então. Viver sem gente é viver menor. Viver sem gente é muito mais do que viver em solidão. Solidão é um estado de que até muita gente que vive cheia de gente, em certa maneira, também depende. Viver com gente não precisa ser entregar-se a uma multidão, nem a fulano das quantas. Gente, aqui, é em sentido lato, lato. Diria que gente pode ser qualquer um e um só: o cãozinho vira-lata, o velhinho da esquina, a criancinha da foto, o vizinho de lado, mas desde que o amor seja grande.

Gosto de depender do que dependo. É um cotidiano ato de entrega apreciada que se assemelha mais a atos de escolha que de domínio. Ultimamente, no entanto, pleiteio uma luta vã. Não é, agora, como o cóccix quebrado que me quitou os movimentos por um tempo; nem como os desmaios, que me quitaram a consciência por alguns minutos. Tenho uma nuvem nos olhos (ao nível do mar, no verão do meio dia) como se tivesse a mil metros de altitude às seis da manhã em pleno outono. É, meu mundo anda embaciado, agora, não por estresse ou depressão, como um monte de gente que conheço, mas por astigmatismo e miopia, como um monte de gente que conheço... Já faz meses que comprei o apêndice e acho que se não o puser na cara agora vou acabar perdendo o nariz... pois é, ao meu mundo embaciado é preciso óculos, esse apêndice extra-cotidiano de que também não escapei.

Pensando bem, na verdade, na verdade, não é de óculos que dependo, mas de visão. Se não me fizesse falta a visão, pra que, então, os óculos? Pensando bem melhor do que no bem pensar anterior, depender ou não depender pode, apesar de prisão, ser questão de escolha. Dependo mais da visão do que da aversão a óculos. Opto, a partir de agora, por ver só as nuvens feitas de nuvens. Bem-vindo, óculos, ao entorno! Adeus, embaço!

9 comentários:

Alisson da Hora disse...

Dependências...é bom depender do que se gosta...mas aí,creio que não seja dependência, mas sim uma permuta...eu não gosto de depender de muitas coisas...mas a Natureza não dá saltos...a gente só consegue independência de verdade quando a gente CRESCE...E pra crescer, não adianta teatros: a gente tem de ser crescido de verdade...

beijos, beijos...

a.h.

Alisson da Hora disse...

pidona!!!!!!!!Teu texto é doce e amanteigado, como bolo de goma...se derrete a cada linha lida, a cada pensamento digerido...
Doce e saboroso...

Anônimo disse...

Theresaaaa
Passando soh pra mais uma vez te elogiar
e dizer que ninguem escreve como VC!!! O seu jeito de explicar as coisas é UNICO... e eu Adoooro!!!
bju grande, lindona.

Anônimo disse...

Dos melhores.

Pense também que as lentes serão uma espécie de proteção entre você e o mundo: a nitidez adquirida, um reduto da ordem contra o caos das formas sem limites.

E, caso sinta falta dos vagos contornos de outrora, das luzes estrelas que se explodem e se contêm, é sempre possível, num gesto rápido, retirar as lentes, suprimir a barreira que a separa das coisas, e dar ao mundo, mais uma vez, um instante de liberdade e rebeldia.

Anônimo disse...

Amore,
Depender é demasiado humano. Só nós que entendemos a solidão somos capazes de entender que dependência não é totalmente ruim. Dependo das pessoas que amo mesmo sabendo que posso me equilibrar na linha da vida sem elas...dependo pq a vida é muito mais bonita com tais pessoas ao meu lado. Tb dependo de óculos. Peguei ontem na ótica e já observo o mundo com mais brilho. Dependo pq sei que posso muito bem não usá-lo, mas a vida agora tem outros contornos.

Um cheiro
jana

Anônimo disse...

Theresa
Estive aqui novamente e novamente amei suas linhas, tradutoras de idéias sempre interessantíssimas.
Que nos fazem pensar e nos emocionam...
Uma bjk

Anônimo disse...

Voltei pra dizer que cada vez que entro no seu blogger fico encantada. Parabéns!!! É lindo e é a sua cara! Bjs

Anônimo disse...

;*

Anônimo disse...

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