sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Voz en vilo

Dos lugares a que quis chegar, Comala é o de mais difícil acesso – povoado vigiado por almas que impedem a proximidade de qualquer nova criatura. Pedro, Suzana, Eduvirge, Damiana se alternam na vigília e camuflam o acesso àquelas terras à sombra do mais mero espreitar alheio.

Sob as ordens diretas de Pedro, eles cultivam a terra, para que esta se torne cada dia mais dura, mais acidentada, mais páramo e do interesse de ninguém. Lá não se chega por trem, nem por barco, nem por força de bicho.

Há em Comala um cavalo que perdeu a razão por matar o dono. Além dele, mais nada que conduza, sequer alguém que preste informação. Só o cavalo percorre o limbo. E ele, ao contrário de mim, não deseja a chegada, e sim o instante repentino da fuga.

Pobre bicho atormentado pelo remorso. Por mais que fosse possível transpor a barreira, ele não escaparia nunca de si mesmo. Se ele não se perdoa, não há perdão. Se se condena, sempre existirá a pena. E só por isso, penso. Qualquer outra ameaça de condenação é farsa social, teatro, cena. Mas o cavalo não se perdoa. Ouço o seu relinchar de desespero, um som suspenso sem direção que o conforme, sem corpo, sem rastro, como todas as vozes de Comala. É impossível segui-lo. Mas eu não desisto.

Quero chegar a Comala, ainda sabendo que quem pisa lá está condenado a passar não só o resto da vida, mas o tempo inteiro (inteiro!), sem esperança de morte que extinga a mediocridade de ser homem no mundo; sem a esperança de céu que o faça um ser menos humano e mais divino.

Quero chegar a Comala, ainda que saiba que lá a terra cobre gente, coisas e abafa todas as vozes. Comala é uma espécie de civilização subterrânea, como as que os livros contemplam, mas sob suas terras só se escondem ruínas de pouco valor, que se esfacelam a cada novo golpe de vista. Toda a sua arquitetura está condenada ao esquecimento, ao anonimato, exceto uma, aquela que se ergue sob a feita da palavra.

Um ano, dois, três... Sigo sob o sol... um não me move mais que a condescendência...

(...)

Sigo...

Mas Pedro Páramo não gosta de ser contrariado. Sinto suas ordens para que camuflem mais todas as entradas. Até o padre Rentería foi convocado para sabotar as possibilidades de caminho. É por isso que a Igreja não o perdoará. Mas ele parece perceber que o mundo é mais dos caciques que de Deus e escolhe por quem ser temente.

(...)

Sigo rumo ao páramo, e pelo páramo, porque percursos íngremes não merecem grandes glórias nem maiores facilidades...

(...)

Pedro ordena a que camuflem. Mas eu sigo.

(...)

Pobre Pedro... Vejo-o com desdém. Sabe ele que não adianta camuflagem. Contraditoriamente, as diversas tentativas de ida são, já, uma espécie de chegada.

Sim, me dou conta de que cheguei a Comala, sem licença, rompendo a paragem, sem carimbo no bilhete ou grandes formalidades.

Sim, já estou. Hoje me dei conta de que cheguei já há alguns anos...

Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía yo. De hecho, aquí estoy, aquí me encuentro. Voz en vilo, por supuesto. ¿Pero para qué la retórica, si tengo mis murmullos?

8 comentários:

Alisson da Hora disse...

lindo, simplesmente...

beijos

a.h.

Alisson da Hora disse...

"sem esperança de morte que extinga a mediocridade de ser homem no mundo; sem a esperança de céu que o faça um ser menos humano e mais divino."

quando leio algo assim, me pergunto sobre o meu enxerimento de me achar "escritor"...ora...sou apenas um escrivinhador incompetente e chulo, apenas um reles e medíocre ser que nem perder a razão como o cavalo que matou o dono perdeu...buááááááá

Me disse...

Deixe de drama que nem eu sou tanto, nem você é tão pouco. :)
Às vezes esse medo de dizer o que somos nos faz diminuir a nós mesmos pra elogiar o outro. Eu mesma faço isso, como se nós fôssemos o limite de/para algo. Mas nós não somos o limite nem temos limites, nenhum de nós. Busquemos, nesse espaço sem bordas, a nossa grandeza. Afinal, estamos, todos, condenados a viver em Comala, diante da eterna consciência. Que não percamos a razão. Que não nos condenemos. Que possamos olhar para nós mesmos e ver-nos sem máscaras, e que não tenhamos vergonha de ser o que somos.
Difícil, não?
Se é. Eu que o diga.
Mas, um dia, quem sabe... o céu deve ser nesse ponto: ver-nos homens, mostrar-nos homens.
Um beijo, Álisson, meu amigo.

Anônimo disse...

Theresa
Vc TEM q escrever mais aqui, adoro ler suas palavras e fazia tempo que não tinha este privilégio.
Bom ano pleno de produções - literárias e mundanas..
Bjo

Natalia disse...

Nunca mais tinha vindo aqui. Muito bom, viu?

Bjo

Cláudia Campelo disse...

Pois é: Por mais distante que nos levem nossos pés, não nos afastaremos de nós mesmos um só instante. E era apenas essa a vontade...

Me disse...

Oi, Fá,
Valeu pela visita. Espero, sim, voltar mais aqui durante este ano. Até porque adoro as visitas, e só escrevendo para recebê-las. Grande beijo e bom ano para todos nós, literário e mundano.

Naty, valeu por vir aqui!
=**

Pois é, dona Cláudia, às vezes, sair de nós é o único desejo. Mas talvez nem com a morte. Se houver eternidade, ela deve ser a grande tragédia humana. Ou não. Nos dirá a vida que levemos.
Beijo grande e valeu por aparecer.

Anônimo disse...

verdadeiras cores de Dali num cadinho com Gaudí e sabores do Gabo?