A quase todo o mundo é dado ter um primo João. Você tem um primo João? Eu tenho um primo João. O meu primo João passou a existir a partir dos meus sete anos. Veio ao mundo como um bonequinho de neve: redondo e branco... tinha um bucho grande e redondo, uma cabeça grande e redonda, dois olhos grandes e redondos, que saltavam ainda mais da cara por serem azuis, bem azuis...
Tenho muitas lembranças do meu primo João; umas engraçadas, outras nojentas, mas todas muito prazerosas. Nas férias, sempre íamos à praia. Raras eram as vezes em que não dividíamos a mesma cama de casal João e eu. À noite, sempre acordava com um peso... era a cabeça grande e redonda de João sobre as minhas costas. O primo João migrava pela cama a noite inteira, como se buscasse um canto bom para recostar seus sonhos, e as minhas costas pareciam ser o lugar ideal pra isto. Mas eu replicava e empurrava o primo João pra lá. Ora, o sonho de João não poderia vir às custas do meu soninho, não...
O primo João babava no travesseiro. Eca. O primo João babava no meu travesseiro. Eca dupla... asco... Eu tinha um travesseiro fino e suave em que a minha mãe sempre punha a minha fronha preferida, uma friazinha e verde. Mas o meu travesseiro e a minha fronha preferidos eram também os do primo João. Como João era mais criança do que eu e dormia mais cedo, sempre fazia birra para dormir com o meu travesseiro. Então, duas horas depois do início do sono do primo João, quando o meu vinha vindo, tiravam o travesseiro dele e me davam pra eu dormir... não sei com que o primo João tanto sonhava... talvez com as engrenagens da fantástica fábrica de baba... a fábrica produzia a todo vapor, e, quando me tocava usar o travesseiro, ele sempre e sempre e sempre trazia nódoas de um verde destacado bem no centro, um adorno de beleza e asco que sumia a cada dia para renascer na noite seguinte...
Duas eram as brincadeiras preferidas com o primo João. A primeira e matinal, com primo João desperto, era arrumá-lo como uma menina: perfume, batom (ao que ele pedia a cada nova manhã pelo nome de “mom-mom”), maquiagem... Joaninha, chamávamos a ele Lena (sua irmã) e eu. À noite, com o primo João dormindo, a brincadeira era às escondidas, para que ninguém percebera... degustação... pegávamos, Lena e eu, tudo o que viesse à nossa frente (e que fosse comestível, claro!), do ácido ao doce, do suave ao amargo, e púnhamos na boca de João, ao que ele replicava com várias expressões faciais (que era o que deveras nos interessava!)... ele nunca acordara, mas havia umas caretas tão feias que pareciam capazes de trazer o primo João à tona, à superfície do mundo, lá onde os adultos viam a novela e Lena e eu aguçávamos o paladar da pequena criatura. Éramos cientistas a fazer experimento. O resultado? João sempre comeu de tudo, não rejeita nenhum sabor, como se a todos eles tivesse sido habituado desde tenra idade.
O primo João cresceu e hoje está maior do que eu (geralmente as pessoas maiores de 15 anos são maiores do que eu...). Os olhos, de azuis, passaram a verdes, como se tingidos por duas gotas grandes e redondas de oceano, deixando-lhe encravada na cara uma memória que ele nunca conservara: o tom verde no centro do meu travesseiro por ele babado...
Desde que a voz emanara da sua boca, as idéias já saíam vestidas de um humor refinado, fruto de uma inteligência das mais brilhantes, como aquelas que excedem os livros (quem o conhece sabe da veracidade do que afirmo)...
Não lemos os mesmos livros, não saímos pros mesmos cantos, não assistimos aos mesmos filmes, mas o primo João é das pessoas com que mais me identifico... E hoje as lembranças bateram com tanta força na minha mente que causaram o reflexo involuntário da escritura destas palavras...
Muita gente deve ter um primo João, mas o Henrique, o de olhos cor-de-travesseiro-babado e com humor a Jô Soares, apenas uma dúzia de gente e eu!
quarta-feira, 23 de março de 2005
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4 comentários:
Eu nunca tive um primo João...Tive uma prima chamada Berenice, mas ela sumiu quando completei sete anos...Você é de fato, uma privilegiada...Beijos!
Bora atualizar isso !!!!!!!!!
A todo mundo cabe um primo João. Ainda quando não seja (aos olhos dos outros, dos que não conseguem ver) nem primo, nem João.
Relendo o texto e me deparando com passagens que, apesar do nome, não passam:
"Os olhos, de azuis, passaram a verdes, como se tingidos por duas gotas grandes e redondas de oceano, deixando-lhe encravada na cara uma memória que ele nunca conservara: o tom verde no centro do meu travesseiro por ele babado..."
Lembra o que conversamos sobre o desenvolvimento e o aproveitamento de uma imagem? Pois é. Uma imagem assim raras vezes será desperdiçada.
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